Quantas vezes você precisou parecer alguém para continuar sendo aceita?
Alice caiu. Caiu fundo.
Não tropeçou apenas num buraco no chão, mas no abismo entre o que esperam dela e o que ela é.
Caiu num mundo onde as regras não fazem sentido, os papéis mudam a cada cena e tudo parece uma grande peça sem ensaio.
No País das Maravilhas, ela cresce e encolhe literal e simbolicamente tentando se ajustar a um lugar que muda o tempo todo.
Tentando se encaixar em portas, normas, expectativas.
Assim como a gente.
Vivemos em uma era onde é preciso performar felicidade, autoconfiança, sucesso mesmo quando o que existe é exaustão.
Nos tornamos personagens de nós mesmos, atualizando versões otimizadas da nossa imagem para serem bem recebidas por algoritmos e pessoas.
Mas a que custo?
A lógica do absurdo
A Rainha de Copas grita: “Cortem-lhe a cabeça!” por qualquer deslize.
Parece exagero, mas não é assim também que funcionam os cancelamentos, os julgamentos, os padrões irreais?
No mundo de Alice, o julgamento vem antes da culpa. No nosso também.
Fala-se tanto de felicidade, de sucesso…
Mas e o espaço para o fracasso? Para os erros?
Eles são essenciais para atingir o tal “sucesso”.
Sim, há espaço para vítimas, para dores já legitimadas.
Mas e para os meus erros?
Eu mesma corto a cabeça deles ou a sociedade o faz por mim.
- Carol Bragatto
Quando foi que normalizamos isso?
A perfeição não existe, sabemos. Mas performamos ela.
Vivemos um tempo que se exige sentido, coerência e controle o tempo todo.
Mas a mente humana é falha, contraditória, viva. Se exige sentido o tempo todo: produtividade, coerência, linearidade.
Mas a mente humana não funciona assim. A dor, a dúvida, o cansaço... não se encaixam no feed.
A sociedade da performance, como denuncia o filósofo Byung-Chul Han, não precisa mais de opressores: nos tornamos nossos próprios carcereiros.
Vigiamos a nós mesmos. Sorrimos quando não queremos. Fingimos que está tudo bem.
Porque parar seria fracassar. E fracassar… não cabe no Instagram.
Foucault escreveu sobre o controle dos corpos primeiro na punição física, depois nas escolas, nas instituições.
E mais tarde, na performance.
Não é mais necessário reprimir basta induzir.
Nós nos policiamos.
Seguimos regras invisíveis, sorrimos por obrigação e nos curvamos sem perceber.
A sociedade da performance, como denuncia também Byung-Chul Han, nos cobra estar bem, produzir, vencer, ter propósito…
E quanto mais nos cobramos, mais nos esvaziamos.
E Alice?
Alice, apesar de confusa, ousa fazer perguntas. Questiona o sentido das regras.
Ri do absurdo. Se recusa a aceitar as verdades impostas.
E ao acordar descobre que talvez tudo tenha sido só um sonho. Ou um espelho.
Mas será que estamos dormindo também?
Contra a corrente
Talvez resistir hoje seja não performar.
Falar de tristeza sem floreios.
Assumir dúvidas sem enfeitar.
Rejeitar a exigência de coerência.
Permitir-se ser incompleto. Permitir-se ser.
Porque no fundo, o País das Maravilhas não é tão diferente do nosso.
É só que lá, ao menos, tudo era assumidamente louco. Aqui… a loucura vem vestida de normalidade.
Carol, esse texto me fez pensar em tanta coisaaa, principalmente reinterpretando o filme da clássico da Alice. obrigada por compartilhá-lo com a gente. 💗🫂
Quando li o título, já sabia que iria ler sobre cancelamento. Reassisti Alice esse ano e não pude deixar de fazer essa associação também haha.
Acho incrível que muita gente virou a Rainha de Copas e nem nota. Querem cancelar uma pessoa, aí cancelam quem segue essa pessoa, cancelam quem curte o conteúdo dessa pessoa, cancelam os amigos, cancelam quem não faz vídeo de repúdio… Parece que querem a MORTE de alguns. Não compreendo isso e não participo de cancelamentos de pessoas.