Existe uma dor que quase ninguém vê. Ela não sangra, não grita alto, não se impõe no espaço, mas vive lá dentro, implodindo em silêncio. É a dor de quem nasceu com um cérebro que percebe o mundo em frequências diferentes, mas que aprendeu a se moldar ao ritmo dos outros para sobreviver.
Essa é a dor de muitos autistas considerados "funcionais". Aqueles que, aos olhos da sociedade, “não parecem tão autistas assim”. Essa frase, muitas vezes dita como um elogio, é uma faca de dois gumes. Porque o que não se parece… muitas vezes não é visto. E o que não é visto, não é cuidado.
Estamos falando de pessoas que vivem com Transtorno do Espectro Autista (TEA) Nível 1 de Suporte, antes conhecido como Síndrome de Asperger ou autismo leve. Aquelas que conseguem se comunicar verbalmente, têm autonomia aparente e, em muitos casos, passam despercebidas pela sociedade, pelos profissionais… e por si mesmas.
Mas o que é parecer autista?
É não olhar nos olhos? É ter crises públicas? É ser “muito diferente”?
E se a pessoa aprendeu a imitar olhares, a sorrir no momento certo, a engolir colapsos?
E se a dor virou performance?
Para muitos autistas, especialmente os diagnosticados tardiamente ou sem suporte, a vida se torna um teatro constante. Um esforço imenso de mascaramento. Eles observam, copiam, memorizam padrões sociais. Não por escolha, mas por sobrevivência.
Esse mascaramento (ou camuflagem social) já foi estudado por diversos pesquisadores. Um estudo de 2020, publicado no Autism Research, mostrou que o mascaramento constante está fortemente associado a sintomas de depressão, exaustão e crises de identidade. O preço de “parecer normal” pode ser a perda do próprio eu.
Por isso, não é raro que esses autistas passem a vida sendo interpretados como “dramáticos”, “sensíveis demais”, “preguiçosos” ou “egoístas”. A falta de acolhimento nasce da falta de reconhecimento: se não se vê, não se cuida.
A dor invisível do autista camuflado é feita de sobrecarga sensorial contida, de mal-entendidos afetivos, de hiper empatia que cansa, de tentativas frustradas de se conectar. É feita de solidão. De cansaço. De um mundo que exige uma atuação constante sem nunca oferecer um intervalo.
E o mais cruel é que, muitas vezes, nem o próprio autista sabe que é autista. Cresce achando que há algo errado com ele, quando, na verdade, há apenas algo diferente.
Não se trata de diagnóstico para rotular. Mas para legitimar. Para aliviar a culpa que tantos carregam sem saber por quê.
Se você é uma dessas pessoas, talvez este texto te sirva como espelho. E se você não for, talvez ele te ajude a enxergar o que costuma passar despercebido.
A dor de quem não parece mas é.
O que é o Autismo Nível 1?
Segundo o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), o TEA é classificado em três níveis de suporte:
Nível 1: necessidade de suporte leve, mas ainda com prejuízos na comunicação social e comportamentos restritos e repetitivos.
Nível 2: necessidade de suporte substancial.
Nível 3: necessidade de suporte muito substancial.
No Nível 1, a pessoa consegue "funcionar" em muitos contextos, mas à custa de um enorme esforço mental e emocional. Elas podem parecer “adaptadas”, mas estão constantemente lutando para entender nuances sociais, interpretar expressões, regular estímulos sensoriais e disfarçar o desconforto.
É um esforço invisível.
A máscara que cansa
Estudos recentes, como o de Hull et al. (2020), mostram que o camuflamento social (ou masking) é muito comum entre autistas nível 1. Especialmente entre mulheres. Esse comportamento inclui copiar expressões faciais, forçar contato visual, evitar demonstrar desconforto sensorial e ensaiar falas para interações sociais.
Por fora: sorrisos.
Por dentro: exaustão, ansiedade, sensação de inadequação.
Esse mascaramento constante tem sido associado a um aumento nos índices de depressão, ideação suicida e esgotamento mental (Cage et al., 2018).
Pessoas com autismo nível 1 não “sofrem menos”, apenas sofrem mais caladas.
Diagnóstico tardio e apagamento
Como esses indivíduos não se encaixam no estereótipo clássico do autismo (não verbal, isolado, com comportamentos muito estereotipados), muitos passam anos ou a vida inteira sem diagnóstico. Isso leva a sentimentos profundos de inadequação, fracasso, confusão identitária e autocrítica severa.
Muitas vezes são diagnosticadas erroneamente com transtornos de ansiedade, depressão, TDAH ou até transtornos de personalidade. Sem o diagnóstico correto, recebem tratamentos que não acolhem sua verdadeira necessidade: entender sua forma diferente, mas legítima, de funcionar.
Por que falar disso importa?
Porque o sofrimento não precisa ser escancarado para ser legítimo.
Porque quem vive tentando se adaptar o tempo todo pode perder o próprio eixo.
Porque o nomear é o primeiro passo para cuidar.
Reconhecer o autismo de nível 1 é reconhecer a diversidade da mente humana e é também uma forma de incluir o invisível, de validar a dor silenciosa e oferecer alívio a quem sempre sentiu que era “demais” ou “de menos”.
Se você se viu nesse texto, talvez já tenha vivido a exaustão de ser social demais por fora e esgotada por dentro. Talvez já tenha se culpado por não suportar ruídos, toques, interrupções. Talvez nunca tenha ouvido: isso também é autismo. E está tudo bem.
O diagnóstico não limita. Ele liberta.
Liberta do autojulgamento, da solidão sem nome, da busca incansável por "consertar" algo que nunca esteve quebrado.
Esse foi um texto menos poético e mais científico, precisamos falar sobre autismo!
Com Carinho,
Carol Bragatto | Psicóloga (CRP 16/11065).
Lindo e esclarecedor... necessário e produtivo... esse é o texto Parabéns
Muito bom! Eu me descobri autista somente em novembro do ano passado, aos 28 anos já. Foi um alívio, porque vi que meus inúmeros fracassos (principalmente sociais) de certa forma estavam justificados.
E o engraçado é que eu faço terapia com psicólogo desde 2012. Já passei por mais de 5 terapeutas diferentes (a maioria psicanalista, mas tive uma da TCC) e nenhum deles sequer levantou essa possibilidade.
Foi graças a conversas com minha irmã, que agora está cursando psicologia, que me veio essa hipótese em mente e por conta disso fui procurar fazer a avaliação neuropsicológica (que foi a segunda, pois já tinha feito uma antes em 2017 a respeito de outro diagnóstico, mas restou inconclusivo).
Atualmente estou procurando um terapeuta da TCC que aceite convênio, estou há mais de 1 ano sem atendimento